segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Eu, Etiqueta

Em minha calça está grudado um nome 
Que não é meu de batismo ou de cartório 
Um nome... estranho. 
Meu blusão traz lembrete de bebida 
Que jamais pus na boca, nessa vida, 
Em minha camiseta, a marca de cigarro 
Que não fumo, até hoje não fumei. 
Minhas meias falam de produtos 
Que nunca experimentei 
Mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido 
De alguma coisa não provada 
Por este provador de longa idade. 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, 
Minha gravata e cinto e escova e pente, 
Meu copo, minha xícara, 
Minha toalha de banho e sabonete, 
Meu isso, meu aquilo. 
Desde a cabeça ao bico dos sapatos, 
São mensagens, 
Letras falantes, 
Gritos visuais, 
Ordens de uso, abuso, reincidências. 
Costume, hábito, permência, 
Indispensabilidade, 
E fazem de mim homem-anúncio itinerante, 
Escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. 
É duro andar na moda, ainda que a moda 
Seja negar minha identidade, 
Trocá-la por mil, açambarcando 
Todas as marcas registradas, 
Todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
Eu que antes era e me sabia 
Tão diverso de outros, tão mim mesmo, 
Ser pensante sentinte e solitário 
Com outros seres diversos e conscientes 
De sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio 
Ora vulgar ora bizarro. 
Em língua nacional ou em qualquer língua 
(Qualquer principalmente.) 
E nisto me comparo, tiro glória 
De minha anulação. 
Não sou - vê lá - anúncio contratado. 
Eu é que mimosamente pago 
Para anunciar, para vender 
Em bares festas praias pérgulas piscinas, 
E bem à vista exibo esta etiqueta 
Global no corpo que desiste 
De ser veste e sandália de uma essência 
Tão viva, independente, 
Que moda ou suborno algum a compromete. 
Onde terei jogado fora 
Meu gosto e capacidade de escolher, 
Minhas idiossincrasias tão pessoais, 
Tão minhas que no rosto se espelhavam 
E cada gesto, cada olhar 
Cada vinco da roupa 
Sou gravado de forma universal, 
Saio da estamparia, não de casa, 
Da vitrine me tiram, recolocam, 
Objeto pulsante mas objeto 
Que se oferece como signo dos outros 
Objetos estáticos, tarifados. 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso 
De ser não eu, mas artigo industrial, 
Peço que meu nome retifiquem. 
Já não me convém o título de homem. 
Meu nome novo é Coisa. 
Eu sou a Coisa, coisamente.

-Carlos Drummond de Andrade

sábado, 24 de agosto de 2013

Entrei, sentei, abri meu livro e os olhares eram de animação
Entrei, sentei, abri meu livro e os olhares eram de alegria
Entrei, sentei, abri meu livro e os olhares eram de entusiasmo
Entrei, sentei, abri meu livro e outra pessoa sentou também
Entrei, sentei, abri meu livro e essa pessoa começou a chamar a atenção
Entrei, sentei, abri meu livro e os olhares estavam divididos
Entrei, sentei, abri meu livro e os olhares estavam quase parando
Entrei, sentei, abri meu livro e fiquei invisível
Entrei, sentei, abri meu livro e virei uma voz distante
Entrei, sentei, abri meu livro e minha voz sumiu
Entrei, sentei, abri meu livro e os olhares voltaram
Entrei, sentei, abri meu livro e já não me queriam mais ali
Entrei, sentei, abri meu livro e tudo estava torto
Entrei, sentei e me perguntei "o que ainda estou fazendo aqui?"

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

aprendendo a não aprender

Em anos eu aprendi a ser paciente. Aprendi que eu sou mais importante do que você. Aprendi que sou mais orgulhosa. Aprendi que meu mundo é maior do que o seu.

Aprendi que a primeira palavra nem sempre tem que ser minha, mas a última sim. Aprendi que mesmo a última palavra sendo a minha, seus comentários não devem parar.

Aprendi que você tem que começar o assunto e aprendi que você tem que terminar. Aprendi que eu não tenho obrigação a nada e você tem obrigação a tudo.

Então por que eu não aprendo a deixar pra lá? Por que eu não aprendo a tentar parar de adivinhar como você recebeu a minha mensagem ou o que você pensou vendo o meu nome na tela?

Por que eu não aprendo a deixar você? Por que eu não aprendo que você não quer estar lá o tempo todo? Por que eu não aprendo que eu tenho que continuar? Por que eu não aprendo que eu tenho que andar sozinha? Por que eu não aprendo que eu tenho que soltar a sua mão e correr...

Correr o mais rápido que eu posso, porque como sempre, o vilão da minha história é você.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Não me imagino ganhando.
Não me imagino ganhando dinheiro.
Não me imagino ganhado fama.
Não me imagino ganhando sucesso.
Não me imagino ganhando amor.
Não me imagino ganhando você.
Não me imagino ganhando nada.
Só me imagino ganhando a vida.
Ganhando os passos que eu dou.
Ganhando o ar que respiro.
Ganhando a vida até que eu ganhe a morte.
Até que não seja possível eu ganhar mais nada.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Pelos bons tempos e até pelos maus tempos.
Por você e por mim.
Por nós e pelos outros.
Pelo céu e pelo inferno.
Pelo frio e pelo calor.
Por tudo que ainda nos resta.
Se é isso que eu posso chamar de amor.
Um passo de cada vez, um pé atrás de outro.
Respiração automática como o frio que passa pelo corpo.
Anda, anda, anda e não parece chegar a lugar nenhum.
Para, respira, passa a mão pelos braços gelados, respira mais fundo e atravessa a rua.
Seus passos duplicam.
Mas não são só seus passos.
Anda, anda, corre, anda e ainda não chegou a lugar nenhum.
Seus passos viram um de novo e tudo volta a ser automático.
Sua vida volta a ser sozinha de novo com tantos passos duplicados.